CIA DE EROS 5° GERAÇÃO |
Apresentação
O espetáculo teatral “Através de Alice: sono, sonhos, soluços e suspiros”
foi uma proposta de investigação cênica para “Alice no país das
maravilhas” de Lewis Carroll pela Companhia de Eros no ano de 2015, em comemoração aos cento e cinquenta
anos da publicação do livro, aos cento e vinte e cinco anos da Brasital e aos cinco
anos de formação do grupo.
O projeto em questão foi viabilizado
pelo 1° Edital do Fundo Municipal de Cultura da cidade de São Roque – SP. A
proposta pretendia não apenas viabilizar o acesso da comunidade em geral ao
espetáculo, mas também, e principalmente, desenvolver atividades educativas com
objetivo de ampliação do repertório visual e com foco em procedimentos do
teatro contemporâneo.
O projeto contemplou três dimensões:
Na dimensão
Workshop: esta frente teve a finalidade de desenvolver nos professores e, por
consequência, nos estudantes do ensino fundamental da rede municipal o
interesse pela arte. Organizamos encontros entre a equipe realizadora e
professores interessados, visando à formação de espectadores, facilitando assim
o acesso linguístico ao espetáculo. Foram quatro encontros com professores da
Secretaria de Educação que multiplicaram pelas escolas a leitura de “Alice no
país das maravilhas” pelo viés do surrealismo. Outra ação dentro dessa dimensão
foi uma oficina de colagem realizada pela fundadora da Sociedade Lewis Carroll
do Brasil, Adriana Peliano, para os integrantes da Companhia de Eros.
Na dimensão Exposição:
partilhamos uma exposição dos mini cenários para os doze capítulos do livro “Alice
no país das maravilhas”, criados por Daniela
Campos, estudante de Artes Visuais na Universidade de São Paulo (USP) e
ex-integrante da Companhia de Eros na sua primeira geração. Além dessas
esculturas-objeto, fizeram parte dessa exposição, intitulada “Através Através de Alice”, as
ilustrações, da mesma artista, dos integrantes do grupo, todos caracterizados
de Alice, com a técnica lápis de cor e caneta sobre papel.
Na dimensão Espetáculo:
realizamos uma temporada de sete apresentações no Salão do Núcleo de Música do CEC
Brasital; uma apresentação no Teatro Paulo Autran (Hotel Villa Rossa em São
Roque) e encerramos a temporada no Centro
Municipal de Educação e Cultura (CEMEC) em Mairinque – SP. Participamos também
do Festival Cartográfico de Artes na cidade de Votorantim – SP.
O
grupo
O grupo teatral Companhia de Eros
(doravante apenas CIA), originou-se em uma oficina de teatro ministrada pela
diretora e arte/educadora Lisa Camargo
em janeiro de 2010 no Centro Educacional e Cultural Brasital. Seguindo uma
escolha temática, o “teatro do gesto”, doze adolescentes finalizaram essa
oficina de vinte horas e reivindicaram a continuidade.
Era a oportunidade de interferir na
questão da visibilidade do teatro e a sua relação com a sociedade na cidade. A
opção pela formação de um grupo foi uma estratégia com vistas ao fortalecimento
do teatro como forma privilegiada de uma ação
cultural.
Ação cultural:
processo de estimulação das capacidades de um sujeito ou grupo criador, através
de um procedimento em geral de caráter artístico, o qual será determinado pelo
próprio sujeito ou grupo. Segundo o pensador francês François Jeanson, citado
por Teixeira Coelho Neto em “O que é ação cultural”, Ed. Brasiliense, 1988, “um
processo de ação cultural resume-se na criação ou organização das condições
necessárias para que as pessoas inventem seus próprios fins e se tornem assim
sujeitos – sujeitos da cultura, não seus objetos”.
A escolha do saber fazer aliada ao
saber pensar encontra forte respaldo na linguagem teatral, ao favorecer e
fortalecer o trabalho coletivo. E o teatro
de grupo é enriquecedor pelo fato de oferecer a seus integrantes a chance
de se envolver com o processo artístico por completo, além de ser um
instrumento de mobilização e de intervenção no meio sociocultural.
“O
teatro de grupo constitui uma categoria de organização e produção teatral em
que o núcleo de atores movido por um mesmo objetivo e ideal realiza um trabalho
em continuidade e, estendendo sua atuação a outras áreas, principalmente no que
diz respeito à própria concepção do projeto estético e ideológico, o grupo
acaba por criar uma linguagem que o identifica”.
·
TEATRO de Grupo. In:
ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú
Cultural, 2017. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo69/teatro-de-grupo>.
Acesso em: 02 de Mar. 2017. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7
ISBN: 978-85-7979-060-7
Ao promover, no processo criativo, a
discussão necessária para a compreensão do fenômeno artístico e da ação
cultural, os (as) participantes percebem o redimensionamento, não apenas dos
aspectos pessoais, mas também dos sociais. Então, nesse sentido, a ação
sociocultural em teatro é compreendida sob a luz de uma perspectiva educacional
crítica, procurando desenvolver uma consciência estética e ética para dar voz
aos integrantes.
Nesses sete anos da CIA,
podemos afirmar que foram muitas as experiências positivas do ponto de vista
afetivo, cognitivo, estético e ético que contribuíram para a formação de
sujeitos mais seguros nas suas escolhas futuras.
Convencionou-se dentro da CIA
usar o termo “gerações” para distinguir ano a ano as formações, já que é
flutuante em função das disponibilidades. Os integrantes são adolescentes na
média de 12 a 18 anos, oriundos de escolas públicas e particulares da cidade e
região.
Dentro da CIA defendemos um
relacionamento alicerçado na convicção de que somos, sempre, sujeitos
dialógicos, em permanente formação. Buscamos manter um discurso claro e bem
fundamentado e contínua abertura para o novo, para o conhecimento em
ininterrupto devir.
Em resumo: a CIA desenvolve atividades
que inclui entretenimento, processos arte/educativos e experimentação, propondo
a prática teatral como meio de comunicação e formação de público na cidade de
São Roque.
A equipe realizadora e a proposta de
encenação
As pessoas que tiveram a missão de
coordenar tecnicamente o projeto: Carolina
Villaça: artista-docente, responsável pela produção e preparação corporal; Daniela Campos: estudante de Artes
Visuais, assumiu a cenografia e figurinos; Lélis
Andrade, artista-docente, também responsável pela preparação corporal do
elenco; e Lisa Camargo,
arte/educadora e encenadora da CIA, responsável pela compilação de
textos, roteiro e coordenação do projeto.
Apesar das funções definidas, nossa
metodologia pode ser classificada dentro da pesquisa-ação. Isso significa que a
equipe esteve o tempo todo em meio à criação, à direção cênica, às proposições
de pesquisa, à produção etc. e, por esse motivo, resolveu assinar o espetáculo
em conjunto, usando o termo “direção compartilhada”.
Não entendemos o ensino de teatro com
enfoque na auto-expressão e muito menos na reprodução do teatro tradicional,
que tem somente a função de predispor o espetáculo e não se preocupa em formar
o sujeito. Com essa premissa a equipe
realizadora fez deste projeto uma experiência criativa e didática.
Definimos de início, já que a opção era por um tema nonsense, que seria impossível contar
Alice de forma convencional; pensávamos que uma encenação que tentasse ser
totalizante, decepcionaria.
Com esse desafio, exploramos vários conteúdos que foram
do estudo do movimento surrealista ao teatro de figuras alegóricas, doravante
apenas TFA.
Teatro de Figuras Alegóricas: é a proposta de um modelo espetacular
desenvolvido pela Professora Doutora Ingrid Koudela na Universidade de Sorocaba
– SP. Segundo Koudela, citado por Joaquim Gama em Alegoria em jogo, Ed.Perspectiva,
2016,“na contemporaneidade, a mistura de gêneros e o desinteresse por uma
tipologia teatral única, acompanhada pela dificuldade de uma separação nítida
dos gêneros dramáticos, fez emergir outras denominações para a cena. O teatro
de figuras alegóricas se constitui numa forma teatral própria com base em seis
premissas. São elas:
1- Não
conta histórias construídas a partir da relação de causa/efeito, mas alinha
quadros que se relacionam através de associações;
2- Não
apresenta caracteres psicologicamente diferenciados, mas sim figuras
alegóricas;
3- Não
há uma imitação ilusionista da realidade, mas sim realidades autônomas com
regularidades espaciais e temporais próprias;
4- Não
transmite mensagens racionalmente atingíveis na forma discursiva, mas cria
universos imagéticos que valem por si;
5- Não
almeja, em primeira linha, a ativação e influência sobre a consciência, mas sim
motivar o jogo de troca entre as camadas estruturadas imageticamente no
subconsciente e o pensar conceitual;
6- Busca
romper o limite na relação entre palco e platéia.
Sobre a técnica na preparação corporal
No processo de pesquisa, criação e
montagem do espetáculo “Através de Alice:
Sono, Sonhos, Soluços e Suspiros”, os integrantes da CIA participaram de um
trabalho técnico, teórico e prático, o qual foi sustentado por meio de duas
etapas:
·
Consciência
e
·
Expressão
do corpo
No que diz respeito à primeira etapa,
o objetivo foi proporcionar ao aprendiz
de ator/atriz desenvolver uma consciência do seu corpo anatômico e cultural. E
para alcançar tal resultado alguns estudiosos da área da linguagem teatral e
dança contemporânea foram explorados, sendo eles e, respectivamente, seus
estudos: Ivaldo Bertazzo e Klauss Vianna (educação somática).
Na segunda etapa, o processo se
amparou em Viola Spolin (Jogos Teatrais), Marcelo Lazzaratto (Campo de Visão),
Jacques Lecoq (Máscara Neutra, Coro, Corpo da Palavra e Improvisação), Rudolf Laban
(Análise das Ações Simples e Complexas e o Espaço) e Renato Ferracini
(treinamento energético).
O intuito de dividir a preparação
corporal em duas etapas ocorreu no entendimento dos preparadores em buscar, em
um primeiro momento, de aprofundar a “consciência” do próprio corpo, individual
e coletivo, dos integrantes da CIA, compreendendo desta forma,
quais informações habitam e formam este corpo para que assim, em uma segunda
etapa, pudesse ser utilizada desta consciência já ampliada, um caminho para se
expressar com maior criatividade e domínio.
Apoiados nessas técnicas variadas, vindas da formação
universitária dos preparadores corporais e de suas experiências vividas com
tais técnicas, os aprendizes exercitaram
e desenvolveram a liberação, a concentração, a sensibilização, a integração e a
prontidão desejadas para o espetáculo.
Sobre o espetáculo
A
Companhia de Eros espera pela chegada de Alice. Enquanto a personagem mais
famosa da literatura mundial não chega, eles brincam entre sono, sonhos,
soluços e suspiros. Será que Alice vem?
O espetáculo teve como livre
inspiração a dissertação de mestrado “Através
do Surrealismo e o que Alice encontrou lá” (USP, 2012) de Adriana Peliano,
uma “especialice”, artista visual, designer, escritora e fundadora da Sociedade
Lewis Carroll do Brasil.
Dentre as referências artísticas do surrealismo pesquisadas pela autora,
escolhemos: René Magritte e Salvador Dali.
Citando
Joaquim Gama em Alegoria em jogo, Ed. Perspectiva, 2016, “no século XX, o
teatro, com a intenção de representar as múltiplas dimensões do mundo moderno,
trouxe à cena vários elementos das artes visuais: a tela, os inúmeros efeitos
visuais, combinando imagens projetadas com cenas e esculturas com atores. Cabe
destacar que movimentos artísticos como o dadaísmo, o surrealismo e o futurismo tiveram fortes influências na configuração
desse teatro, que buscava ser mais imaginativo e sensorial”.
As apresentações iniciavam com a
exposição de Daniela Campos. Enquanto aguardavam a abertura
das portas do “teatro”, o público apreciava os mini cenários de Alice e as
ilustrações criadas durante o processo.
O espetáculo teve sua narrativa
construída a partir de doze composições de cena, articulados ora com imagens e
fragmentos de textos de Adriana Peliano ou da história de Carroll, ora com
vídeos e ações corporais. Os vídeos que dialogaram com o espetáculo eram dos
integrantes da primeira geração da CIA, representando alguns dos personagens
criados por Lewis Carroll: o Coelho Branco, a Rainha de Copas, a Lagarta Azul,
o Gato de Cheshire e o Chapeleiro Maluco com a Lebre de Março.
Na técnica compositiva, valemo-nos de
sobreposição e repetição, justaposição de imagens numa relação dialógica com as
obras de arte apreciadas em projeção dos artistas mencionados.
Vale destacar que além da dissertação
de Peliano, há forte influência do teatro
de figuras alegóricas na nossa encenação no que tange ao modelo de ação.
“No
Brasil, o conceito de modelo de ação
tem sido ampliado por Ingrid Koudela, cujas contribuições nos possibilitam
pensar como modelo não só textos escritos, dramáticos, mas também textos
imagéticos. Não se trata de qualquer texto imagético, mas de obras de arte
relacionadas à produção de artistas que têm uma trajetória significativa no
âmbito das artes visuais. A opção por obras de arte reside na concepção
brechtiana de que para que o modelo possa ser imitado é necessário que haja
nele algo de soberano, digno de ser imitável. O que se busca é um modelo em que
seja possível aprender com o autor da obra. Assim, as imagens que têm
interessado a pesquisadora e encenadora são obras clássicas”.
Essa citação também foi extraída de
“Alegoria e Jogo” de Joaquim C.M. Gama. Nesse livro Gama refletiu sobre a
encenação como prática pedagógica do espetáculo Chamas na Penugem, uma experiência cênica de 2008 com os alunos de
Arte e Educação com habilitação em teatro da Universidade de Sorocaba (UNISO).
Para explicar o motivo de tanta
influência do TFA na concepção de
montagem de “Através de Alice”, mais esclarecimentos são necessários.
Atendendo ao convite de amigos estudantes
de teatro na UNISO em 2008, Lisa Camargo assistiu à estreia do espetáculo Chamas na Penugem no dia 21 de junho do
mesmo ano, no Teatro Municipal de Sorocaba Teotônio Vilela.
A experiência estética instigante causou
um impacto sobre ela, assim Camargo começou a pesquisar o TFA, através dos artigos científicos publicados posteriormente (o
livro de Gama desenvolvido em função de sua tese de doutorado na Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo foi publicado em 2016).
Ingrid Dormien Koudela assinava a
encenação e a dramaturgia de Chamas na
Penugem. Na época, era professora
convidada da Universidade de Sorocaba, assim como Joaquim Gama.
-000-
Descritivo cronológico das
principais atividades:
09 de janeiro de 2015: os
integrantes do grupo visitaram a exposição de Salvador de Dali no Instituto
Tomie Ohtake com curadoria de Montse Aguer.
24 de janeiro de 2015: reunião
com os pais dos integrantes da CIA.
27 a 29 de janeiro de 2015: oficina
de Reeducação do movimento com orientação
de Lélis Andrade.
03 de fevereiro de 2015: início
dos ensaios.
03 de março de 2015: reunião
com a Secretária de Educação.
31 de março de 2015: 1°
workshop com professores da rede municipal com o tema Alice e o Surrealismo.
07 de abril de 2015: apresentação
da performance sobre Salvador Dali.
14 de abril de 2015: apresentação
de aula expositiva sobre René Magritte.
26 de abril de 2015: encontro
entre a equipe, o elenco, os integrantes da 1° geração e a apresentação da
menina convidada para representar Alice.
28 de abril de 2015: 2°
workshop com professores da rede municipal com o tema Alice Ilustrada.
29 de abril de 2015: reunião
com Chefe da Divisão de Cultura.
02 de maio de 2015: oficina
de colagem
para os integrantes da CIA explorando o universo imaginário
de Alice com Adriana Peliano.
12 de maio de 2015: 3°
workshop com professores da rede municipal com o tema Alice na fotografia.
17 de maio de 2015: gravação
dos vídeos pelo cinegrafista contratado para o projeto Anderson Pedron com
integrantes da CIA, primeira geração.
28 de maio de 2015: ensaio
fotográfico de Daniela Campos para a disciplina “Introdução a
forma tridimensional” (USP). O foco estava nas gaiolas construídas por Daniela para o espetáculo Através de Alice.
02 de junho de 2015: 4°
Workshop com professores da rede municipal com o tema Alice e o Teatro.
04 de julho de 2015: Exposição
“Através Através de Alice” de Daniela Campos.
24 de julho de 2015: apresentação
de “Através de Alice: sono, sonhos,
soluços e suspiros” no Festival Cartográfico de Artes de Votorantim – SP.
22 de agosto de 2015: ensaio
fotográfico com Luciana Ferreira, fotógrafa contratada pelo
projeto.
18 a 27 de setembro de 2015: temporada
espetáculo.
07
de novembro de 2015: apresentação no Hotel Villa Rossa – São Roque
08
de novembro de 2015: participação da CIA com uma cena de
“Através de Alice” no Sarau do Coletivo do Kabuletê.
17
de dezembro de 2015: última apresentação do espetáculo em
Mairinque.
-OOO-
Processos críticos e transformadores fundamentados numa
concepção de educação que valoriza a construção do conhecimento e o desejo de ter uma prática
artística no qual a pesquisa teatral se funde ao processo, com atenção aos
aspectos pedagógicos da criação cênica é uma constante em nossos trabalhos.
Como já foi mencionado, não estamos inseridos em ambiente
escolar formal, mas consideramos nossa atuação em situação educacional. Fazer
uma opção pedagógica, ou seja, assumir um posicionamento sobre objetivos e
modos de promover o desenvolvimento e a aprendizagem de sujeitos num contexto
sociocultural concreto implica decisões e ações que envolvem o destino humano
de pessoas.
Para “Através de Alice”, pensamos na
articulação da cena contemporânea com o ensino de arte, tentando compreender
suas especificidades para o desenvolvimento da formação artística na
contemporaneidade, sobretudo, na perspectiva da participação ativa do
espectador na elaboração do sentido da cena teatral, ultrapassando a barreira do
lógico-racional.
Nessa direção, a adoção de um modelo espetacular
denominado “teatro defiguras alegóricas”
(TFA), que pretende configurar-se como uma abordagem pedagógica e estética
a ser desenvolvida no campo da pedagogia do teatro, proposta esta encaminhada
pela pesquisadora Ingrid Koudela, têm
influência direta na nossa encenação, como já mencionado.
Segundo
Joaquim Gama (2016, p. 95), em seu livro Alegoria em jogo: “A encenação como
prática pedagógica implica a concepção de que no próprio desenvolvimento da
montagem teatral encontra-se o campo de investigação prática e teórica. Nesse
sentido, os processos de aprendizagens artísticas estão voltados aos
procedimentos didáticos utilizados no desenvolvimento do trabalho cênico, nas
opções estéticas e nos levantamentos bibliográficos que definem o arcabouço
teórico da encenação”.
Como nos ensina Ingrid
Koudela, citada por Gama: “ao combinarmos a produção
artística teatral à pedagogia do teatro temos a oportunidade de construir um processo
cênico e pedagógico de valor significativo tanto para o Teatro como para a
Educação”.
Vale salientar que essa proposta favoreceu o diálogo com
outras abordagens contemporâneas, ficando a critério da equipe coordenadora e integrantes
do grupo a elaboração de outras proposições, quando a tentativa “cega” de
seguir as premissas do TFA não eram suficientes.
A partir de agora, passaremos a discutir os procedimentos
didáticos e as opções estéticas que responderam às nossas necessidades na
montagem de “Através de Alice”.
“ATRAVÉS DE ALICE: SONO,
SONHOS, SOLUÇOS E SUSPIROS”:
ENCENAÇÃO COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA
A Arte/Educação, na contemporaneidade, tem buscado novos
paradigmas e a proposta da encenação como prática pedagógica trouxe a possibilidade
de experimentarmos o sentido da arte como provocação, invenção e, a ampliação
da capacidade de significar as experiências estéticas e educativas.
A montagem do espetáculo implicou encaminhamentos
didáticos relacionados à leitura de imagem das doze heliogravuras de Salvador
Dali, publicado em 1969 pela New
York’sMaecenas Press-Random, para o livro Alice no país das maravilhas, edição daquele ano. Por uma
maravilhosa coincidência essas ilustrações fizeram parte da mostra do artista
reunidas numa exposição pelo Instituto Tomie
Ohtake, a qual grande parte de integrantes da CIA tiveram o privilégio
de conhecer em janeiro de 2015.
Da obra do belga René Magritte, quatro de seus óleos
sobre tela foram referenciadas no espetáculo: “Alice au pays dês marveilles”,
1946; “The son of man” 1946; “The Great War on Facades”, 1964 e “LeThèrapeute”,
1937.
As opções estéticas foram sendo discutidas na observância
das premissas do TFA:
A partir da história criada por Carroll há cento e
cinqüenta anos, contamos também uma história, mas através de uma narrativa enviesada.
Narrativa
enviesada: termo cunhado de Katia Kanton, Ed. Martins Fontes,
2009, “para criar suas narrativas enviesadas, uma das estratégias dos artistas
contemporâneos é o uso de contos de fadas. Essas histórias paradigmáticas do
mundo ocidental são conhecidas o suficiente para poderem ser fragmentadas,
repetidas, desconstruídas e viradas do avesso pelos artistas. Não há risco de
que a identificação com o espectador ou leitor desapareça, considerando-se a
popularidade de que são revestidas”.
No lugar do começo-meio-fim tradicional, compusemos o espetáculo
a partir de tempos fragmentados, sobreposições, repetições, deslocamentos.
Substituímos as cenas dramáticas tradicionais por doze
quadros elaborados para o espetáculo, ou melhor, preferimos denominá-los de doze
“Composições” no que diz respeito as suas definições presentes na maioria dos
dicionários: formar de várias partes;
entrar na constituição de; arranjar; dispor; produzir; fazer; escrever. Dessa
forma, nos aproximamos da primeira premissa do TFA, ou seja, não contamos uma história construída a partir da
relação de causa/efeito, mas alinhamos quadros que se relacionaram através de
associações.
Abaixo as doze composições para o espetáculo:
1°
A espera por Alice
2°
Menina rio e/ou o barco de Lewis Carroll
3°
O relógio mole e palavras valises
4°
Meninas surreais e/ou metamorfoses
5°
Toca do coelho e o sorriso do gato de Alice
6°
Será que Dali pinta o sonho ou sonha pintando?
7°
A espera por Alice 2
8°
Relógio mole e palavras valises 2
9°
Meninas gaiolas Magritte + Mulher Rosto Jardim
10°
O chá esfria a gente muda
11°
Alice no país de René Magritte
12°
Quem Alice pode vir a ser?
Como descrito acima, todo o trabalho não esteve
relacionado à interpretação de um texto dramático, portanto não caberia também a
formulação de personagens dramáticas. Preferimos adotar o termo “figuras” (sem
o “alegórico” pela complexidade do termo).
Assim, cada integrante da CIA participava da
encenação como ele (a) mesmo (a), adotando ora ou outra a figura da Tartaruga,
do Chapeleiro, do Coelho, da Lebre de Março, etc. A valorização da
individualidade de cada corpo e de cada gesto como expressão de uma identidade
foi a marca deste projeto.
Nesse sentido, nossa encenação não apresentou conflitos
individuais e/ou psicologismos, atendendo a segunda proposição do TFA.
Quanto à terceira premissa que propõe um teatro não
ilusionista, é preciso destacar que o foco do nosso experimento esteve na
realidade teatral, seguindo a tendência contemporânea da não hierarquia entre
os elementos cênicos. Ações corpóreas, projeção de imagens, vídeos, objetos, sons
entre outros teceram o discurso, ou melhor, o jogo entre esses elementos é que
compuseram o discurso cênico de “Através de
Alice”.
Ainda na tarefa de relacionar as premissas do TFA à estética do nosso espetáculo, a
quarta orienta o seguinte: “não transmite
mensagens racionalmente atingíveis na forma discursiva, mas cria universos
imagéticos que valem por si.”
Na contemporaneidade, onde a imagem se consolidou como
elemento fundamental de comunicação e conhecimento, impera também a necessidade
da formação de espectadores para ver, compreender e produzir imagens a fim de
que seja garantido o seu reconhecimento como sujeito crítico e criativo.
Por meio da imagem foi possível criar processos de
aprendizagem com o grupo de adolescentes,
acionando a imaginação, cognição, relações com o espaço e principalmente o
trabalho corporal, que em vários momentos da encenação, eles próprios criavam
imagens. A título de exemplo na composição “Toca do Coelho”, os corpos dos
atuantes se juntavam para formá-la e em seguida os mesmos corpos se reagrupavam
em outro espaço para a estilização de uma bicicleta.
Mais do que pretender uma apreensão lógica e racional do
espetáculo, nossa intenção foi causar um efeito quase sinérgico no espectador.
Ações corpóreas em diferentes movimentos, direções, planos, relações com o
espaço e com o outro, tornaram-se os princípios geradores da criação.
Outra das características do contemporâneo é pensar sobre
o lugar do espectador. Assim sendo, as narrativas não lineares criam fendas,
desvios, permitindo ao espectador digressões, ou seja, exercer sua imaginação
para fazer associações e conexões, assumindo a co-autoria da criação.
Essas características da encenação oferecem provas de que
a colaboração estreita entre a teoria do TFA
e a nossa prática foi produtiva e possível. Segundo a quinta premissa, motivamos
o jogo de troca entre as camadas estruturadas imageticamente no subconsciente e
o pensar conceitual.
E por fim sobre a sexta premissa, a busca de romper o
limite na relação entre palco e platéia, entendendo aqui além da tentativa de atrair
as sensibilidades disponíveis do público, mas também a relação do espaço de
apresentação é preciso fazer uma consideração.
Nossa proposta inicial não era a de se reportar ao mais
comum do teatro formal, ou seja, de termos uma relação frontal entre atuantes e
plateia (à italiana). Em virtude da impossibilidade do uso do espaço inicialmente
pensado, tivemos que adotar a relação frontal, frustrando nossas expectativas
de apresentar outra relação entre palco/platéia.
Para concluir: “Através de Alice” foi um projeto
artístico pedagógico que contemplou a sensibilidade, a percepção, a imaginação,
a invenção, a expressão e a sociabilidade que caracterizam algumas das
abordagens do ensino de teatro no mundo contemporâneo.
-OOO-
Público
Alvo e Impacto sobre comunidades e grupos
Através
de Alice estreou no
dia 24 de julho de 2015, no Auditório Municipal Francisco Beranger de
Votorantim, como parte da programação do Festival Cartográfico de Artes (Região
Metropolitana de Sorocaba). Nessa apresentação, a predominância era de
artistas, parentes e convidados que praticamente lotaram o auditório com
capacidade para 270 pessoas.
Da estreia até o mês dezembro, foram 10
apresentações, com um total aproximado de mil espectadores.
A temporada em setembro do mesmo ano
com sete apresentações no Salão do Núcleo de Música da CEC Brasital para um
público de sessenta pessoas por sessão não era suficiente para a platéia
constituída basicamente por estudantes, professores e público em geral. Tanto
que numa delas, tivemos que distribuir convites para uma segunda apresentação
que nem estava planejada.
Em uma dessas apresentações (20 de
setembro), após o espetáculo, com duração de quarenta e cinco minutos,
promovemos um debate sobre o trabalho, aproveitando da presença de Adriana Peliano, autora da dissertação
que deu origem a idéia de abordarmos Alice pelo viés do surrealismo. Várias Avoltadas
à própria linguagem teatral. Havia uma necessidade de entender que teatro era
aquele, até pelo elenco que ainda procurava uma lógica.
De forma resumida, Adriana Peliano
colocou o seguinte: “que o desafio de
trabalhar com a arte é justamente lidar com aquilo que a gente não entende. Começar um trabalho já sabendo onde quer
chegar, isso não é um processo de criação. Lidar com o que você não entende é
um desafio da arte e um desafio de Alice”.
obs: Infelizmente, a gravação do debate
ficou com a qualidade de som muito ruim e conseguimos “pinçar” somente a fala
de Peliano.
Incentivar o debate sobre a cena
contemporânea era um dos nossos objetivos e a intenção que nossa estética
despertasse novas conexões entre a sensibilidade e o cotidiano das pessoas foi
atingido. As observações vinham espontâneas após cada apresentação, “sentimos
mais que entendemos...”.
obs.: uma das falhas de nosso projeto
foi não ter documentado formalmente os depoimentos do público.
E por fim, outro dos nossos objetivos
estava na contribuição com o movimento teatral na cidade de São Roque que
juntamente com outro grupo estudantil, o Casca
Grossa (que tem o mesmo tempo de formação do nosso) tem colocado em cena o
protagonismo juvenil. A adolescência
requer dos educadores maior disposição para entender e dialogar com as formas
próprias de expressão juvenis.
Depoimentos do Elenco
“Meu processo de
inclusão na Cia de Eros não podia ser melhor. Achei que fosse uma coisa menos
dinâmica e não divertida... Me surpreendi! Como todos os integrantes, me perguntei
sobre tudo no começo da criação do espetáculo Alice. Como por exemplo: "Estamos tendo aula de teatro ou de biologia?”, por
conta do vasto, porém, importante, estudo sobre o corpo humano. Antes da
finalização, claro, passamos por dificuldades, mas nada que não pudesse ser
superado com a Cia. Tanto que o nosso espetáculo foi o maior sucesso!
Alice, para mim, foi um aprendizado de
vida, e nunca vou ver essa história como via antes... Tenho certeza que, quem contemplou o
espetáculo, também não.”
Ana Clara Amorim, 14 anos
“Até
chegarmos no "Através de Alice: sono, sonhos, soluços e suspiros" que
temos hoje, houve um processo de montagem muito bom, com muitas conversas,
ideias e trocas.
Aprendi
muito nesse ano de trabalho com a Companhia de Eros, e com Alice. Foi um
processo trabalhoso, e um tanto difícil, mas que nos deu um maravilhoso
resultado”.
Bia Riccio, 14 anos
“Eu
já conhecia o trabalho da Cia de Eros e tinha amigos que faziam parte dela,
quando um deles me disse que iriam dar início a uma montagem inspirada em Alice
no país das maravilhas, e, eu que já havia feito teatro e estava parada, sentia
necessidade de voltar aos palcos e essa era a melhor chance de voltar.
No
começo éramos desafiados com jogos teatrais, com o passar do tempo esses jogos
foram direcionados para a cena pelos nossos mestres/tutores Lisa, Carol e
Lélis.
Estive
muito confusa em boa parte da montagem, frustração e descrença quase me tiraram
dali, mas meu amor pelo teatro e a confiança que tenho por todos ali foram mais
fortes. Quando a peça já estava pronta que comecei a entender a proposta, que
era nada mais que não entender, mas senti-la e apreciar suas belas imagens.
Fico
muito grata por ter tido essa oportunidade única.”
Denise C. Octávio, 17 anos
“A Cia de Eros, mais que um
grupo de teatro é um grupo de dança, de estudo, de questionamentos, de amores,
de amizades... uma árvore que dá frutos revolucionários para nossa sociedade.
A montagem de "Através
de Alice..." durou cerca de um ano e meio. Tal montagem envolveu pesquisa,
amadurecimento, reflexão, trabalho coletivo e principalmente aprender a
trabalhar com o incompreensível...
O projeto seria realizado de
forma totalmente distinta sem o Fundo Municipal de Cultura que teve grande
importância para a realização de Alice”.
Léo Paiva Lopez, 14 anos
“O processo de montagem de
"Através de Alice..." foi uma loucura.
A cada vez que montávamos
uma cena, não sabíamos onde ela se encaixaria e nem o que ela significava, mas,
quando tudo foi se encaixando, tudo ficou mais "entendível".
Alice nos uniu e nos fez
pensar em tanta coisa, buscar, conhecer, praticar, inovar.
Alice foi e é parte do nosso
crescimento no teatro e na vida.
Alice é um sonho, te faz
viajar para todos os tempos e dessa vez, juntos, ficamos presos no tempo do
surrealismo.”
Maitê Netto, 15 anos
“Acho
que nunca estudei tanto quanto para o processo de Através de Alice!
Tantas
horas de dedicação me fez pirar e ao mesmo tempo, passou tão depressa.
Passei
por abismos de medo, flutuei nos ares da satisfação... foi uma experiência
completa. Até parece que os arrepios e carinhos compartilhados entre nós em
cada uma das apresentações nunca sairão de mim.
Eu,
com certeza, sentirei falta desse espetáculo, desses estudos e desses momentos
de união.
Evoé,
eróticos!”
Marina Rizzi, 15 anos
“O
processo de criação de Através de Alice, foi a coisa mais louca que vi até
agora.
Foi
um ano de preparação que só entendemos o porquê disso, agora, seguimos as cegas
e quando todos estavam duvidando de que iria dar certo, organizamos as cenas e
eu vi que todo aquele esforço valeu a pena.
Entender
totalmente Através de Alice, eu não entendi, mas o pouco que sei é o
suficiente, e, faz parte de toda a graça não entender.
Através
de Alice ampliou meus horizontes em relação ao teatro e ficará marcado pra
sempre em mim”.
Rafaela Ferraz, 15 anos
Sinto
que essa experiência me fez amadurecer tanto na vida pessoal quanto no palco.
A
convivência com todos é muito agradável. Somos muito unidos e nos respeitamos.
A Lisa,
a Carol, a Dani e o Lélis são cuidadosos, compreensíveis e estão sempre
dispostos a nos escutar.
Participar
dessa aventura “alicinante” tem sido maravilhoso. Sou muito grata aos meus
colegas e mestres por essa experiência de muitas trocas e aprendizados.
Gratidão,
CIA DE EROS!
Tifane
Deamates, 16 anos
“Tenho certeza que
todos os componentes da Cia de Eros, não saem dos encontros apenas com
ensinamentos teatrais, mas também com ensinamentos de vida.
No começo do
processo de montagem, estávamos passando por um momento difícil, com algumas
desistências e pessoas não acreditando que os ensaios iniciais gerariam algo
com um bom nível (eu estava entre elas), porém, seguimos em frente e não
desistimos, e, com isso, estávamos nos unindo cada vez mais. Hoje me sinto muito
honrado por estar participando de um grupo como esse (com pessoas
maravilhosas).
O nosso trabalho
resultou em um espetáculo sensacional (mérito a todos do grupo). Mas a melhor
parte é que, faço isso por prazer e não por obrigação. Porém, ainda temos alguns
problemas técnicos, como falta de iluminação e um espaço adequado (palco), que
contribuiria para se fazer uma apresentação melhor”.
José Angelo G. Moraes, 14 anos